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"Fla-Flu do Vale Tudo": Waldemar x Carlson marcou o Maracanãzi

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Na época de ouro do jiu-jítsu, duelos entre os dois maiores lutadores do país mereceram crônica de Nelson Rodrigues e atraíram público recorde na arena

Quando Anderson Silva e Vitor Belfort se enfrentaram pelo UFC em 2011, o confronto foi vendido como "luta do século" e serviu como um "Big Bang" para a explosão do MMA no Brasil. Para o leitor ter uma ideia da dimensão do que foi a rivalidade entre Carlson Gracie e Waldemar Santana, que marcou o Maracanãzinho como templo do Vale Tudo nos anos 1950, porém, é preciso pegar o duelo entre o "Spider" e o "Fenômeno" e multiplicar por 10.

Se as artes marciais mistas estavam no ostracismo no Brasil quando Anderson e Vitor entraram no octógono para se enfrentar no início da década, o jiu-jítsu vivia sua era de ouro no país nos anos 50, e os desafios de Vale Tudo recebiam ampla cobertura midiática. Além disso, as duas lutas entre Carlson e Waldemar no ginásio valiam mais que um cinturão: valiam a honra do nome Gracie, abalada com a derrota de seu maior representante, Hélio, para Waldemar. A rixa entre a nobre família e o humilde empregado que ascendeu a ídolo nacional capturou a imaginação nacional e gerou o que foi chamado de "Fla-Flu" das artes marciais, capaz de atrair, segundo fontes não oficiais, até 40 mil pessoas ao Maracanãzinho.

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Origens

Após a brava apresentação contra Masahiko Kimura no Maracanã em 1951, Hélio Gracie foi elevado ao posto de herói nacional. Sua academia recebeu ainda mais alunos e veículos da imprensa passaram a destacar jornalistas para cobrir diariamente o que se passava no local, como se fossem setoristas de clubes de futebol. Todavia, Hélio já tinha 38 anos de idade e não lutava mais. A família aproveitou a atenção para lançar seu novo campeão: Carlson Gracie. Filho mais velho de Carlos, criado por Hélio, o "Garotão" logo ganhou fama graças a vitórias sobre valentões da época como Cirandinha, Belleza e Passarito - este último, derrotado em pleno Maracanã; o Ginásio Gilberto Cardoso ainda nem estava fundado. Em 1954, aos 22 anos, foi considerado o melhor lutador do ano.

Waldemar Santana, por outro lado, era como um "filho bastardo" da família Gracie. Marmorista de ofício, o baiano chegou à academia para trabalhar como roupeiro e também recebeu aulas de Hélio. Ele fez algumas lutas preliminares nas apresentações de Carlson, mas não era destacado como João Alberto Barreto, Hélio Vígio e Armando Wriedt. Todavia, fez amizade com um dos jornalistas que cobria o cotidiano da academia, Carlos Renato, que eventualmente se tornaria seu empresário. O jornalista é muitas vezes creditado como "instigador" da desavença entre Waldemar e Hélio. O "Leopardo Negro", como era apelidado, reclamava de ser destratado pelo líder do clã e rompeu com a equipe após fazer uma luta sem a autorização da academia.

- Ele fez uma luta com o Biriba, um marmeleiro, e o Hélio não queria que ele lutasse. Ele lutou, e o Hélio achou que era uma atitude que ele não deveria ter tido. Depois ele até retornou. Mas teve outros problemas, foi manipulado por um jornalista chamado Carlos Renato e pelo psiquiatra Waldemar Dutra, que colocaram na cabeça que ele tinha que desafiar o Hélio Gracie - conta João Alberto Barreto.

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Após ser expulso por Hélio, Waldemar desafiou o ex-patrão, que aceitou o combate mesmo estando parado havia quase quatro anos. Os jornais do Rio de Janeiro esquentaram a história da rivalidade, vendendo a narrativa do pobre empregado contra o patrão malvado. Os dois se enfrentaram num vale-tudo em 24 de maio de 1955, na Associação Cristã de Moços, na Lapa, por três horas e 43 minutos. Hélio aguentou o quanto pôde, mas acabou nocauteado após sofrer um chute no rosto de seu adversário. A vitória ergueu Waldemar ao posto de novo herói nacional, e seu triunfo mereceu até crônica de Nelson Rodrigues no jornal "Última Hora".

"Quando Waldemar subiu ao ringue, não estava só. Dir-se-ia que, atrás dele e com ele, subia uma população imensa, subiam todos os que gostariam de esmagar, debaixo do tacão, como uma víbora hedionda, a invencibilidade dos Gracie (...) O fraco sentiu-se menos fraco, o humilhado menos humilhado, e o marido que não pia em casa levantou, por 24 horas, a crista abatida. Todos nós somos cúmplices de Waldemar", escreveu o "Anjo Pornográfico".

Empate frustrante na primeira luta

Mal acabou a luta, porém, Waldemar já tinha outro Gracie em seu encalço: Carlson. Ainda no ringue, o sobrinho de Hélio desafiou o ex-companheiro de treinos a enfrentá-lo, também no Vale Tudo, para vingar a derrota do tio, então com 43 anos e sofrendo efeitos de uma febre.

- Posso dizer que me encontro em melhor situação que meu tio Hélio para lutar com o Waldemar. Espero que o vencedor de hoje não fuja à obrigação moral que tem de aceitar o desafio que ora lhe faço. Desejo lutar com Waldemar nas mesmas condições que ele enfrentou o Hélio - declarou Carlson ao jornal "O Globo".

Waldemar demorou semanas para aceitar o duelo. O baiano aproveitou a fama recém-conquistada para viajar pelo Brasil, fazendo apresentações e recebendo homenagens. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, a violência de sua luta com Hélio era severamente criticada nos meios de comunicação. Apesar de cobrir o Vale Tudo, a imprensa também reclamava desde aquela época de sua "selvageria", e a polícia anunciou que não mais permitiria lutas deste tipo. Waldemar levou isso em consideração quando aceitou o desafio de Carlson. Disse que o combate deveria ser no jiu-jítsu, porque "gostaria de nunca mais intervir num espetáculo de ferocidade como aquele, porque, sinceramente, aquilo nada teve de humano."

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Mesmo assim, a luta entre Carlson e Waldemar atraiu muita atenção. Desta vez, o lutador negro de 26 anos teria um adversário de seu tamanho e idade. O combate foi marcado originalmente para 30 de setembro, mas acabou adiado para 8 de outubro devido às eleições presidenciais, que aconteceram na época. Os jornais deram destaque de páginas inteiras para o duelo, chamado pelo "Última Hora" de "Fla-Flu do Jiu-Jítsu". O resultado foi um Maracanãzinho lotado, com cerca de 25 mil pessoas presentes, apesar de uma capacidade oficial de menos de 14 mil. Aproximadamente 5 mil invadiram o ginásio e disputavam a tapa lugares nas arquibancadas, a ponto de "O Globo" dizer que "o lugar mais tranquilo dentro do Maracanãzinho era dentro do ringue". Aliás, o jornal não fez resumo de duas lutas do card sob alegação de que os repórteres não conseguiram vê-las, por causa da disputa por assentos.

O combate, todavia, decepcionou. Waldemar passou a maior parte do tempo se defendendo e, após cinco rounds mornos, foi declarado o empate. O público vaiou, e Nelson Rodrigues, novamente encarregado de uma crônica, acusou os espectadores de serem "dráculas" sedentos por sangue. "Todos estavam ali com o objetivo não expresso, mas evidente, de ver sangue. Não sei por que cargas d'água, formara-se na cidade e no resto do país esta singular expectativa: de que a luta Carlson x Waldemar ia ser um múltiplo e contínuo esguicho escarlate. Em vão, os jornais, o rádio, anunciavam: jiu-jítsu, apenas jiu-jítsu. O público, com sua imaginação de índio, de criança, tem fixações imprevisíveis. Achou que ia ser "vale tudo", e ninguém pode com a teima bovina da multidão," escreveu.

Revanche quebra recordes

Waldemar Santana pareceu ter captado a ideia da multidão. Apesar de exigir uma luta de jiu-jítsu contra Hélio (que nunca aconteceu), o baiano afirmou que, contra Carlson, só lutaria se fosse no Vale Tudo. Ele reclamava de golpes ilegais que o adversário teria dado durante o combate.

- Não lutarei mais com ele em jiu-jítsu, mas só em Vale Tudo. Se Carlson sabe utilizar-se de golpes ilegais no jiu-jítsu, como fez comigo, se sabe dar como se dá no Vale Tudo, então vamos nos defrontar de novo, mas em Vale Tudo. Se eu tivesse feito o que ele fez, seria desclassificado. Ele, entretanto, não o foi, e apenas foi advertido levemente pelo juiz - alegou ao "O Globo".

Carlson, é claro, aceitou, e o novo combate, marcado originalmente para janeiro de 1956, aconteceu enfim em 21 de julho daquele ano. O "Última Hora" chegou a chamar o confronto de "Maior Luta de Todos os Tempos". No "O Globo", a luta mereceu até charge do renomado cartunista Lan. Apesar da tal proibição da polícia, as boas relações dos Gracies com as autoridades conseguiram uma liberação para o evento, novamente realizado no Maracanãzinho. Foram estipulados seis rounds de 10 minutos cada, e a edição do "O Globo" na véspera deixava bem claro: todo tipo de golpe era válido, exceto nas áreas genitais e "anti-desportivos", como "agarrar carnes, orelhas, torcer nariz e orelhas, arrancar cabelos e outros assemelhados". O Maracanãzinho voltou a transbordar de gente, com a presença de celebridades, inclusive o prefeito Negrão de Lima. A renda foi de 1,124 milhão de cruzeiros, e jornais da época diziam que mais de 40 mil pessoas estiveram presentes.

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Desta vez, a luta saciou o apetite do público por um combate aberto. Carlson dominou do início ao fim, no que foi classificado como um massacre. Ele venceu por nocaute técnico aos 9m20s do quarto assalto, quando os dois caíram para fora do ringue e apenas o Gracie teve forças de retornar. Carlos Renato, no córner de Waldemar, informou ao árbitro que seu lutador, com o rosto deformado, não retornaria.

- Foi uma luta renhida, o Waldemar não tinha a técnica do Carlson. O Waldemar era como um lutador de wrestling, mas tecnicamente era inferior ao Carlson. E no boxe o Carlson também era muito melhor, então houve porrada mesmo. Mas foram lutas de alta valentia do Waldemar. Sujeito valente, apesar de não ter a nossa técnica. Enfrentou o Carlson de cabeça erguida, muito corajoso - lembra Barreto, que chegou a ser cogitado para enfrentar Waldemar no lugar de Carlson.

O "Garotão" saiu carregado nos ombros dos torcedores e aliviado por ter recuperado a honra para a família.

- Se eu tivesse perdido aquela luta, hoje os Gracie estariam vendendo bananas na feira - disse Carlson anos mais tarde no programa "Passando a Guarda", do SporTV.

Vida (e rivalidade) que segue

Se Flamengo e Fluminense são rivais em campo e irmãos históricos, o mesmo pode ser dito de Carlson Gracie e Waldemar Santana. A rixa do baiano com Hélio originou a rivalidade entre os dois, mas eles eram bons amigos na Academia Gracie e sempre mantiveram a cordialidade antes e depois de seus combates. Waldemar admitiu ao jornal "O Globo" a derrota e disse que o assunto "estava liquidado".

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Porém, os dois bons amigos se enfrentariam mais quatro vezes, seja no jiu-jítsu ou no Vale Tudo, com mais uma vitória de Carlson e outros três empates. Um desses combates foi o de despedida de Carlson, em 18 de dezembro de 1970, em Brasília.

- (A rivalidade) Trazia um retorno financeiro para os dois. O Waldemar virou um profissional disso. O Carlson ainda tinha um lance da filosofia do jiu-jítsu, mas também era muito competitivo. Acabou virando o tal do Fla-Flu mesmo, uma coisa que era meio que uma garantia de bom público, de grana - comenta Fellipe Awi, autor do livro "Filho Teu Não Foge À Luta", que conta a história do desenvolvimento do Vale Tudo ao MMA.

Carlson Gracie faleceu em fevereiro de 2006, mas deixou um legado enorme para o jiu-jítsu e o MMA. Como treinador, formou nomes como Murilo Bustamante, Amaury Bitetti, Wallid Ismail, Bebeo Duarte, Carlão Barreto e o próprio Vitor Belfort, citado no começo do texto. Waldemar Santana morreu em agosto de 1984, vítima de um derrame, mas também deixou um legado para o esporte. Seu sucesso chamou a atenção para os lutadores do Nordeste, que passaram a receber mais oportunidades nos grandes torneios do país. Mais tarde, seria ele quem apresentaria Rei Zulu, primeiro adversário de Rickson Gracie no Vale Tudo, à família Gracie.

Fonte: http://sportv.globo.com/site/combate/noticia/2014/10/fla-flu-do-vale-tudo-waldemar-x-carlson-marcou-o-maracanazinho.html

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